TRF-3 afasta prescrição em denúncia contra Harry Shibata, o legista da ditadura

Por maioria, os desembargadores da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região acolheram recurso do Ministério Público Federal e afastaram a prescrição dos crimes de falsidade ideológica imputados ao médico legista Harry Shibata, denunciado mais de 11 vezes por crimes envolvendo a ditadura militar e considerado um ‘assíduo colaborador dos órgãos de repressão’ pela Procuradoria. No caso em questão, ele é acusado de elaborar laudos necroscópicos falsos que esconderam sinais de tortura dos militantes Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos, que foram assassinados pelos órgãos de repressão após serem presos ilegalmente e cruelmente torturados entre agosto e setembro de 1973.

De acordo com a denúncia, as torturas e mortes dos militantes tiveram suposta participação de agentes da ditadura como o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o policial Luiz Martins de Miranda Filho e o coronel Antônio Cúrcio Neto. “Embora os óbitos tenham sido causados por intensas sessões de espancamento e uso de instrumentos de tortura, informa a denúncia que o laudo assinado por Shibata, único ex-agente da ditadura que teve algum envolvimento nessas mortes, omitiu marcas evidentes nos corpos das vítimas e apenas endossou a versão oficial forjada na época, de que os militantes haviam sido mortos após troca de tiros com agentes das forças de segurança”, diz a Procuradoria.

Com o entendimento do TRF-3, o processo vai retornar à primeira instância da Justiça Federal, para continuidade da tramitação. A decisão dos desembargadores reformou a que foi dada pelo juízo de primeiro grau – que havia extinto o processo sob a alegação de que o crime estaria prescrito, uma vez que falsidade ideológica não se classificaria como crime contra a humanidade.

Ao TRF-3, a Procuradoria argumentou que não é necessário que cada uma das condutas delitivas que se enquadre no conceito de crime contra a humanidade seja estritamente tipificada pelo Direito Internacional. De acordo com o MPF, ‘não há nenhuma dúvida de que o crime de “desaparecimento forçado” se enquadra nos crimes contra a humanidade reconhecidos pelo Direito Internacional’, uma vez que tal conduta ‘envolve a prática de diversos outros delitos, inclusive o crime de falsidade ideológica’.

A Procuradoria destacou que tais crimes foram cometidos em um ‘contexto histórico específico, em que vigia no Brasil uma ditadura, caracterizada pela supressão dos direitos, liberdades e garantias fundamentais e pela violação massiva dos direitos humanos, inclusive com assassinatos, sequestros, desaparecimentos, torturas, estupros e outras práticas nefastas contra os opositores políticos’. De acordo com o MPF, os delitos são considerados de lesa-humanidade pela comunidade internacional.

A história de Manoel e Emmanuel

De acordo com o MPF, Manoel Lisboa de Moura foi preso em 16 de agosto de 1973 no Recife (PE) no âmbito da Operação Guararapes, que mirava integrantes do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e contava com a atuação do delegado Fleury.

“As torturas começaram ainda a caminho da unidade do Exército na cidade, com a aplicação de choques dentro da viatura. Nos dias seguintes, o militante foi submetido a contínuos interrogatórios, durante os quais sofria agressões, queimaduras e empalamento. Os agentes chegaram a colocá-lo em um pau-de-arara (barra na qual a vítima fica com os pés e as mãos amarrados, de cabeça para baixo), a usar a chamada “cadeira do dragão” (assento para a descarga de corrente elétrica por fios amarrados nas orelhas, na língua ou inseridos na uretra) e a disparar tiros, tudo na busca de informações que Manoel pudesse revelar sobre a organização política”, diz a Procuradoria.

Manoel acabou sendo transferido para o DOI-Codi em São Paulo, ‘onde não se sabe se já chegou morto’ entre o fim de agosto e o início de setembro. Naquele mesmo período, o destacamento recebeu Emmanuel Bezerra dos Santos, capturado por agentes da Operação Condor, ação articulada contra militantes de esquerda.

“O tratamento dispensado a ele na unidade foi igualmente brutal e o levou à morte. Durante as sessões de tortura, Emmanuel teve o pênis, os testículos, o umbigo e dedos arrancados, além de sofrer intensos sangramentos pelo uso do “colar da morte”, um sabre escaldante que os torturadores passavam em volta de seu pescoço, causando profundas queimaduras”, explicaram os procuradores.

Ainda segundo a Procuradoria, Manoel e Emmanuel foram alvejados com tiros para que as perfurações tornassem verossímil a versão forjada para as mortes. Os relatos oficiais, porém, contêm divergências. O Ministério Público Federal indica ainda que os corpos foram encaminhados ao Instituto Médico Legal com pedidos de necrópsia marcados com a letra ‘T’, ‘código usual entre os agentes da ditadura para identificar os considerados “terroristas”, opositores que deveriam passar por uma análise diferenciada que corroborasse as versões dadas pelas autoridades para os óbitos’.

“No caso de Manoel e Emmanuel, Harry Shibata foi um dos responsáveis pelos relatórios que indicaram como causas das mortes apenas choque hemorrágico e hemorragia interna em virtude de ferimento por arma de fogo. Nada foi dito nos documentos sobre os hematomas, as amputações e as queimaduras. Apesar de os pedidos de necrópsia conterem todos os dados pessoais das vítimas, Manoel e Emmanuel foram enterrados como indigentes no cemitério Campo Grande, na capital paulista, em caixões lacrados. Os corpos foram encontrados e identificados somente em 1992”, explicou ainda a Procuradoria.

COM A PALAVRA, A DEFESA

Até a publicação desta matéria, a reportagem buscou contato com a defesa, mas sem sucesso. O espaço permanece aberto a manifestações.

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