Entediada com a própria família, garota resolve enviar uma hiena em seu lugar na festa de debutante, causando horror e perplexidade aos convidados e à sua mãe. Enquanto isso, uma mulher participa de um estranho jogo de damas com os ministros de uma rainha, cujo vencedor levará a monarca ao zoológico, onde será devorada pelo leão. O traço surreal não é novidade na literatura da inglesa Leonora Carrington, cujos melhores trabalhos estão reunidos em Um Conto de Fadas Mexicano e Outras Histórias, lançado agora pela Iluminuras. Trata-se de uma seleção em que o insólito ganha ares de normalidade a partir de uma imaginação surrealista.
Leonora Carrington (1917-2011) foi mais conhecida como artista plástica, uma das poucas pintoras e escultoras que se filiaram ao surrealismo, movimento que, fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Freud, enfatizava o papel do inconsciente na atividade criativa.
Seus membros à época do surgimento (anos 1920 e 30) eram quase exclusivamente homens, o que transformou a arte de Leonora, mais que em uma opção artística, em uma tomada de posição em favor da liberdade de expressão da mulher em sua totalidade. Afinal, as artistas associadas ao movimento eram vistas por seus colegas masculinos nada mais do que como modelos de musas.
“Não tive tempo para ser a musa de ninguém, pois estava muito ocupada me rebelando contra minha família e aprendendo a ser uma artista”, disse Leonora, certa vez.
De fato, sua atribulada trajetória começou cedo quando, jovem, recusou as regras dos internatos católicos – ela se refugiava nas fábulas irlandesas e na obra de escritores ingleses como Lewis Carroll, Jonathan Swift e Beatrix Potter.
Aos 19 anos, iniciou um relacionamento com o pintor Max Ernst (cuja pintura Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol, de 1924, exercia nela um fascínio particular), com quem morou no sul da França, onde eles hospedavam seu círculo de amigos surrealistas.
Com a ocupação nazista da França em junho de 1940, Leonora fugiu e, depois de circular, chegou na cidade espanhola de Santander, onde foi internada em um hospital psiquiátrico depois de sofrer um colapso emocional. Após um breve período em Nova York, Leonora se mudou, no final de 1942, para a Cidade do México, na qual viveria o resto de sua vida.
México
Lá, juntou-se a uma comunidade crescente de artistas, escritores e fotógrafos expatriados, incluindo seu novo marido, o húngaro Imre Weisz. Foi no México também que Leonora reviveu seu fascínio infantil pelas fábulas irlandesas, permitindo-lhe descobrir a força mística da culinária, da cura e das mitologias.
Um de seus quadros, por exemplo, Kitchen Clock (1943), mostra como ela observava a cozinha não apenas como um lugar de rotinas domésticas, mas como um reino mágico, no qual as mulheres podiam realizar atos de transformação alquímica. Já em And Then We Saw the Daughter of the Minotaur (E então vimos a filha do Minotauro), de 1953, ela retrata seus dois filhos pequenos Gabriel e Pablo entre criaturas místicas e bolas de cristal, possivelmente aguardando um ato de adivinhação.
“O sonho, o delírio e o conto de fadas são alguns dos ingredientes mais importantes destes textos”, observa o poeta e artista plástico Sérgio Medeiros, no prefácio de Um Conto de Fadas Mexicano, cujas histórias foram recuperadas em suas versões originais ao longo de um exaustivo trabalho de pesquisa na França e no México realizado por Dirce Waltrick do Amarante (também responsável pela tradução) e Nora M. Basurto Santos.
São dez histórias que oferecem um amplo painel das influências recebidas por Leonora ao longo da vida, decisivas não apenas na construção de sua imaginação como também nas nuanças linguísticas, uma vez que foram originalmente escritas em três idiomas.
“Em seus contos, as personagens estão em um mundo do qual desconhecem as regras, um mundo absurdo que flerta muitas vezes com o horror bárbaro”, observa Dirce, lembrando-se do protagonista do conto O Apaixonado, que guarda o corpo de sua amada nos fundos de sua banca de verduras e frutas. “As lendas irlandesas, os mitos clássicos e mexicanos, a alquimia, a magia, o tarô, entre outras influências esotéricas, alimentaram as criações artísticas de Carrington.”
Dirce aponta também o detalhe de os contos apresentarem os adultos como pessoas muitas vezes violentas e cruéis, reflexo da relação conflituosa que manteve com os pais e também com os professores de diversas escolas tradicionais inglesas, das quais foi expulsa por não se adaptar às regras preestabelecidas.
“Esse é o caso do pai dos meninos de Um Conto de Fadas Mexicano, que bebe e agride os filhos, e do progenitor da protagonista de A Dama Oval, que, para educar a filha, queima seu brinquedo favorito: ‘Você é bem grandinha para brincar com Tártaro. Tártaro é para crianças. Portanto, eu mesmo vou queimar o Tártaro até que não reste mais nada dele'”, destaca a tradutora. “Sua aproximação com o mundo dos sonhos e, consequentemente, com o surrealismo parecia, portanto, natural.”
“A vegetação ao luar expõe seus braços vivos, enquanto uma mulher alienada parece possuir asas… Essas metamorfoses são frequentes no universo de Leonora Carrington, no qual, no entanto, a magia não suaviza a raiva e o sofrimento dos protagonistas (quase todos femininos), fato que só acentua a angústia de vidas que não se encaixam de jeito nenhum nos padrões de comportamento ditos normais”, continua Sérgio Medeiros, para quem a sombra aterrorizadora da morte é um tema muito concreto na literatura da escritora.
Também a obra pictórica de Leonora Carrington está povoada de representações iconográficas de animais fantásticos e também reais – ela usava a simbologia de feras para representar o amor e a liberdade, tanto na pintura como na literatura.
“E, ao contrário da representação feminina na obra de Dalí, de Breton ou de Man Ray, em que criam imagens do mundo exterior e da mulher correspondentes a seus desejos, na obra de Leonora, como também na da mexicana Remédios Varos e da argentina Leonor Fini, a mulher aparece ainda fazendo a conexão com a terra, com a intuição e com o conhecimento”, observou a crítica Berta Sichel, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1998.
Ao longo de sua carreira de oito décadas, Carrington continuou a explorar o mistério do mundo ao seu redor, buscando assuntos que transmitiam seu interesse pelo sagrado – ainda que desvinculado de qualquer religião – e pelos segredos da psique humana. Ao final da vida, costumava dizer: “A única coisa que sei é que não sei”, evocando a máxima do filósofo grego Sócrates sobre o infinito conhecimento. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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