Na era dos excessos, tudo tem um preço, mas nada tem valor

Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla

Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012), foi extremamente feliz ao cunhar para nós a expressão “era dos extremos”, mal sabia ele que o mundo que ele via se descortinar após o curto século XX, se tornaria um barril de pólvora em todas as suas dimensões existentes, o que lá atrás estava latente, hoje assumiu formas e variantes múltiplas, uma volta ao passado bárbaro, algo por muitos tido como impensável de recomeçar, haja vista o alto grau de “sofisticação” da vida moderna, mas nos deparamos com a triste realidade humana, o ser do século XXI conscientemente deixou de lado as lições trágicas da sua história, abandonou em demasia qualquer conselho, qualquer advertência, aventurou-se de modo soberbo numa viagem recheada de perigos, motivações espúrias com aparência de bem; esse mundo ilimitado na mente de alguns ruiu, essa é a magna verdade para o ser humano.

Dois grandes exemplos nos vêm muito bem a calhar sobre o momento presente, dois autores monumentais que nos legaram passagens de infinita sabedoria, que por sua vez se inspiraram na antiguidade grega e seus autores, falamos do pintor Philipp Otto Runge (1777-1810) e do escritor Lev Nikolaevitch Tolstoi (1828-1910). Duas obras em especial merecem destaque, do primeiro temos o conto “O pescador ambicioso e o peixe encantado” e do segundo temos, “De quanta terra precisa o homem?”. Duas palavras mágicas encontram-se nos dois títulos, ou seja, terra e ambição, duas realidades que estamos fartos de ver, ouvir e ler, duas situações cotidianamente em conflito, seja em nosso país, seja mundo afora, o que sobra para uns, falta para milhões, o que empanturra uma minoria, deixa em desespero multidões; definitivamente o ser humano não lê os sinais do seu tempo.

Philipp Otto Runge, um exímio pintor, deixou para a posteridade um incrível conto que nos faz pensar sobre o desejo desmesurado do ser humano, três personagens apenas, um simples casal num lugar qualquer e um príncipe encantado transformado em peixe; o marido um tanto cansado da vida (mas ambicioso ao extremo) pede à mulher que vá pescar algum peixe e ela realmente fisga um muito especial, conta ao marido que por sua vez faz diversas exigências a esse peixe, aos poucos conseguem muitas coisas tais como: casa nova, um castelo, um reino, ser papa e finalmente a sua maior ambição: tornar-se Deus de tudo e de todos. A mulher aturdida por tal pedido, muito preocupada com o rumo das coisas de fato pediu ao peixe que transformasse seu marido em Deus, atendido o seu pedido ela voltou para casa e eis a surpresa, seu marido estava totalmente sozinho e sem nada mais.

Tolstoi, em sua bela e atualíssima obra “De quanto terra precisa o homem?”, segue uma toada parecida com a de Rungue, isto é, encontramos na sua obra um casal normal da Rússia do século XIX, o homem obcecado por mais e mais terra, chega a certa altura a gritar que se ele possuísse uma extensão de terras infinita não temeria nem mesmo o diabo; esse astuto e atento disfarçado chega até o camponês e lhe faz uma proposta arrasadora, consistente em dar ao camponês toda terra que ele conseguisse percorrer um dia inteiro a pé, mas que antes do sol se pôr ele estivesse de volta, caso contrário morreria. Desafio aceito, o camponês saiu em disparada campo afora, só pensando em mais terras para si, a família e posteridade; quanto mais avançava as horas voavam e o diabo sorria sorrateiro, ao retornar àquele, o campônio correu como nunca tinha corrido, mas morreu como sempre.

As duas metáforas relatas de modo sucinto retratam de modo magistral a tendência da mais alta sociedade desenvolvida de todos os tempos, nos dois textos a ganância, o poder, o desejo fora de qualquer limite são os motores que conduzem o ser humano em geral, a sociedade atual dá sinais que pouco ou nada aprendeu com a grave crise sanitária que se instalou globalmente nos últimos tempos. A guerra de todos contra todos dá mostras que retornou com força total, gastam-se trilhões em máquinas para matar, mas não se gasta quase nada com a saúde e hospitais, gasta-se tempo em demasia com frivolidades que pouco ou nada ajudam as pessoas a saírem do fosso econômico e famélico que se instalou em suas vidas; essa é também uma era de extremos, ou seja, ganância e miséria, riqueza e pobreza, abundância e fome, muitas guerras e pouca paz, sorrisos falsos e lágrimas vivas.

Bioeticamente, os excessos atuais que pululam em todas as esferas são sinais de que a sociedade no seu conjunto está tendo um desempenho sofrível ou pior ainda, medíocre; interesses de uma meia dúzia vão na direção totalmente contrária aos interesses de milhões de seres humanos; meia dúzia detém um entusiasmo ilimitado em relação ao futuro, enquanto milhões no presente nu e cru conservam apenas a desilusão. O presente que vivemos agora poderá em muitos aspectos definir o futuro que teremos, esse poderá ser brilhante, saudável, conter em si uma existência digna para todos ou poderá nos trazer dissabores de toda espécie caso nossos apetites e desejos não sejam adequadamente depurados ou até mesmo freados em muitos aspectos; a inquietude do momento leva muitos a não refletirem mais sobre o que realmente importa, os velhos problemas continuam rondando nossas existências só que agora revestidos de um barril de pólvora prestes a explodir, a civilização atual precisa com urgência celebrar um novo jeito de viver.

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR

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