Guerra na Ucrânia: consequências e oportunidades para os setores agrícola e de transporte

No Brasil, início da madrugada de 23 de fevereiro de 2022, uma quinta-feira. Na Ucrânia, 5h da madrugada. Foi quando o alerta vermelho disparou e fomos informados que, depois de semanas de tensão, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que havia ordenado que as tropas do exército russo invadissem o território ucraniano. Em poucas horas, militares tomaram cerca de 10 regiões ucranianas chegando por ar, por terra e por mar, armados com tanques blindados, fuzis e aviões com alta tecnologia.

O cenário de morte e destruição fez parte de todos os noticiários, já que foi possível acompanhar quase em tempo real tudo o que aconteceu – e que continua acontecendo. Um pouco mais adiante, iniciaram as especulações sobre a consequência daquela guerra para o cenário econômico mundial, em uma realidade que começava a enxergar uma luz no fim túnel com a pandemia de covid-19 se retraindo dia a dia.

Os investidores tiveram uma reação imediata, e no mesmo dia as principais bolsas de valores do mundo todo afundaram. O índice de Moscou, principal da bolsa russa, chegou a cair 45%.

O Brasil, que vinha se beneficiando com atração estrangeira pelas commodities, viu a Ibovespa cair e o dólar avançar em relação ao real.

Hoje, cinco meses depois, a principal consequência em relação ao impacto do conflito no leste europeu é, sem dúvida, a inflação. A alta dos preços, a atividade econômica estagnada e o poder de compra reduzido impactam não só os consumidores, mas toda a cadeira produtiva do país, incluindo os agricultores e motoristas.

Flávio Riberi, economista e contador, professor e coordenador de cursos de pós-graduação da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras da Universidade de São Paulo (USP), diz que, com a guerra da Ucrânia, estamos assistindo a um redesenho no mapa de distribuição das commodities pelo mundo. Riberi explica que por um lado existem tensões nas relações comerciais entre a Rússia e os países Europeus que são dependentes do gás fornecido por este país e, de outro, resquícios da pandemia em um momento de alta incerteza global. “O resultado de um momento de incerteza é a adoção de políticas públicas por países, sobretudo aqueles dependentes da importação de gêneros alimentícios, no sentido de acumular estoques de alimentos diante de uma situação que pode se agravar”, diz.

Para ele, a boa notícia é que o Brasil é um país exportador destes gêneros e reconhecido internacionalmente pela qualidade de nossos produtos agrícolas. “Nossa agroindústria possui alcance global. Claro que, ao exportar, existem os riscos de flutuação da moeda utilizada como base monetária no comércio internacional (USD) e a própria cotação das commodities, que vão depender mais da oferta e da demanda”, avalia.

O economista lembra que o presidente Jair Bolsonaro, dias antes de a guerra ser anunciada, visitou a Rússia e, para ele, essa viagem não foi por acaso.  “Sua base política gira em torno do agronegócio e a pauta agrícola brasileira produz uma entrada relevante de recursos, favorecendo nossa balança comercial com a entrada de divisas. Há uma interlocução frequente, mediada por representantes no Congresso que apoiam esta vocação brasileira e, conforme o ministério das relações exteriores avalia os movimentos políticos ao redor do mundo, a ação foi imediata para não se produzir interrupções nas cadeias produtivas”, analisa.

No entanto, ele alerta que há incertezas no mercado interno quanto ao aumento de preços de uma série de insumos necessário a colocação do produto nas praças de comercialização. “O acompanhamento do preço do diesel em cotações no mercado internacional foi prova disso, e exigiu a adoção de políticas públicas articuladas por Estados para atenuar os aumentos de custo via política fiscal com redução de ICMS”, diz.
Em relação à política de preços vigente na Petrobras, Riberi avalia que o Brasil, de certa forma, adquire combustível do exterior. “No início da pandemia, em março de 2020, vimos refinarias de petróleo com capacidade total ocupada e preços negativos. Nunca havíamos visto tal situação. No mundo, o fornecimento de petróleo e seus derivados passou por uma revisão de oferta e, no momento da esperada retomada, as grandes corporações não retomaram os níveis de produção anteriores. O caminho para recompor as receitas foram aumentar os preços e o mundo segue nesta direção”, comenta.

É por isso que, segundo o economista, hoje temos uma situação delicada com o refino de diesel e a própria necessidade de importação deste produto relegando a um componente não controlável, que é a cotação internacional influenciar a volatilidade do preço deste insumo. “Temos uma estatal (Petrobras) que em sua constituição no governos do Presidente Getúlio Vargas tinha o propósito de fornecer este insumo de forma estratégica ao país. Hoje, a empresa sendo uma sociedade de economia mista assistiremos a um conflito frequente entre o interesse de seus acionistas para que a empresa mantenha sua receita sempre indexada as cotações internacionais  [lembremo-nos que muitos investidores na Petrobras são estrangeiros e não residentes no Brasil] e o interesse de seu acionista controlador (Governo Federal) para utilizar a empresa como uma fonte dos desígnios de suas políticas públicas. Neste sentido, o comando da Estatal estará sempre diante da espada de Dâmocles”, pondera.

Além disso, Riberi diz que ainda é cedo para percebemos o que a guerra na Ucrânia está produzindo. “Diante da tempestade, o que podemos fazer é ajustar as velas para lograr o melhor resultado com o comércio internacional”, considera. “Temos um espaço para continuar com uma pauta exportadora robusta, porém não podemos conceber uma desatenção da agroindústria ao mercado brasileiro. Temos um país com mais de 200 milhões de habitantes e alta capacidade de consumo, e os gêneros alimentícios também são cruciais ao nosso desenvolvimento. Dedicar os esforços ao mercado exportador pode trazer bons resultados no curto prazo, porém nossa agricultura deve ponderar entre o lucro e seu papel social como empresa que forneça ao mercado doméstico com preços justos”, alerta.

Falta de insumos
Se há um redesenho no mapa de distribuição das commodities pelo mundo, a invasão da Ucrânia deveria abrir novas oportunidades às exportações brasileiras, ‘ocupando’ uma parcela dos mercados antes abastecidos pela Ucrânia e pela Rússia. Ao menos é o que avalia Roberto Bocaccio Piscitelli, membro da Comissão de Política Econômica do Conselho Federal de Economia. Mas ele lembra que há fatores que também podem comprometer a produção, em especial a falta de insumos, em particular de fertilizantes, que pode neutralizar a tendência ao incremento propiciado pelo alargamento dos mercados importadores, que procurarão compensar as perdas decorrentes da redução ou suspensão das exportações dos dois países envolvidos no conflito.

Em relação a alto do preço dos combustíveis, que impacta todo o setor de transporte, Piscitelli diz que o petróleo se torna mais escasso e mais caro no mundo todo, destacando que a Rússia, embora não pertença à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), é uma das maiores produtoras e fornecedoras mundiais do óleo.

O economista não acredita que haverá escassez de petróleo e de seus derivados, mas chama atenção ao que ele chama de “desmonte programado da Petrobras”, que se tornou, conforme ele, mais dependente dos derivados importados. “Muito embora ainda não possamos produzir internamente o necessário a atender todas as nossas necessidades, demos vários passos atrás, e hoje consolidamos nossa posição de grandes exportadores da matéria-prima e importadores de produção com valor agregado. Mas certamente o consumidor brasileiro vai pagar mais caro”, avalia.

Piscitelli  diz que ,para atender eleitoralmente aos interesses dos caminhoneiros, que tradicionalmente apoiam o atual governo, foi instituído um auxílio, vigente até o final do ano, que é um subsídio que, além do caráter transitório, não ataca as raízes do problema e que poderá ser gradualmente anulado em função de novos reajustes, tendo em vista a política de preços adotada pela Petrobras.

“Parece-nos que o País deveria retomar os investimentos no refino do petróleo, rever urgentemente a política de preços da Petrobras e reverter o processo de desmonte da estatal”, defende o especialista.

Oportunidades

Como já foi dito, a principal consequência que se enfrenta no Brasil em relação ao impacto do conflito é a inflação. Isso porque os custos dos insumos, assim como o diesel, subiram muito.

Gabriel Hercos, que é advogado na área do Agronegócio, Tributário e de Planejamento Patrimonial, esclarece que o Brasil importa mais de 90% dos fertilizantes utilizados no país, e boa parte dessa importação vem da Rússia bem como o Brasil não tem refinarias para suprir a demanda interna e precisa importar diesel e gasolina. “O produtor que já havia comprado os insumos dessa safra e da próxima não teve muito impacto. Mas quem não havia se programa, teve um aumento bem substancial de custo. De outro lado, o preço dos grãos tendem a ficar elevados, dado o cenário internacional”, analisa.

Hercos comenta que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) está trabalhando para que não falte insumos, e até a presente data não houve notícias de escassez.  Minha opinião é que esse árdua trabalho do MAPA continuará e não haverá falta de insumos no país.

Ao contrário, o especialista enxerga oportunidade na situação, já que a  Ucrânia é uma grande exportadora de grãos e, com a guerra, abre-se um vácuo para que outros países supram essa demanda de produtos. “O Brasil vem se movimentando para buscar esses mercados consumidores. Já alimentamos uma em cada cinco pessoas no mundo e temos potencial para aumentar ainda mais a produção e, assim, nos consolidarmos como celeiro do mundo”, acredita.

No entanto, Hercos acrdita que é necessário a criação de políticas públicas que ajudem o setor a expandir, como o investimento pesado em infraestrutura. “Temos problema grave de infraestrutura no Brasil. Precisamos melhorar os portos e as estradas, bem como liberar os projetos de ferrovias para aumentar o escoamento da produção, principalmente no Centro-Oeste e Norte do Brasil”, diz.

O advogado não acredita que vá faltar combustível, já que o país é autossuficiente em petróleo, assim como diz que a alta do diesel não é culpa da Petrobrás. “Temos pouca produção de diesel e gasolina por falta de políticas para a construção de mais refinarias, algo que já vêm desde governos passados. Como o petróleo subiu no mercado internacional, consequentemente estamos pagando mais para importar diesel. Poderíamos implementar uma política de Estado para incentivar a construção de refinarias e, assim, diminuirmos a dependência de diesel e gasolina importados”, qualifica.

Enquanto isso não acontece, os consumidores brasileiros seguem sentindo as consequências econômicas da guerra, como o aumento de preços em tudo no país. “Os alimentos, principalmente verduras e carnes, já pesa muito no orçamento do brasileiro”, lamenta.

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