Curvas de uma estrada sem fim: Os 100 anos de Jack Kerouac

(Paulo Argollo)


O que será que pensava aquele homem de 47 anos, barrigudo, jogado no sofá? As pessoas diziam que ele era um dos caras mais influentes do século XX, que toda uma geração de cabeludos desligados de bens materiais, pregando sexo livre e chapados de maconha e LSD viam a obra dele como uma fonte inesgotável de inspiração. Justo ele, um homem católico, desiludido, cada vez mais convicto num posicionamento político de direita. O que será que ele pensou nos instantes antes da hemorragia em seu estômago, causada por uma cirrose, lhe tirar a vida? É impossível saber. Mas não tão impossível é entender como ele chegou àquele ponto. Como o homem que rasgou as estradas dos Estados Unidos em busca de sua própria existência, se relacionando com pessoas incríveis, ouvindo jazz, expandindo a mente e escrevendo, sempre escrevendo, sobre tudo que vivia, se tornou um homem amargo, barrigudo, alcoólatra e reacionário numa sala abafada vendo TV numa cidadezinha da Florida.

Não é exagero nenhum dizer que Jack Kerouac realmente foi uma das pessoas mais influentes do século XX. O Livro On The Road foi sua obra-prima, recebido pelo público jovem como uma obra quase messiânica. A mesma forma que o livro deu a Kerouac conforto financeiro, também transformou sua vida num turbilhão de questionamentos, incertezas e mágoas. Ele nunca fora moldado para a fama. Era um homem tímido, de criação católica e de origem pobre. A maneira como tudo mudou de repente não poderia mesmo fazer bem.

Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu no dia 12 de março de 1922, na pequena cidade de Lowell, Massachusetts. Tinha ascendência franco-canadense, o que fazia com que ele e sua família não fossem muito bem-vistos numa cidadezinha conservadora no meio do nada nos Estados Unidos. Além do preconceito racial, também havia na época uma forte resistência a imigrantes. Ainda pequeno, passou a ser chamado de Jack, para facilitar o convívio com outras crianças. Teve uma educação rigorosa num colégio jesuíta, que não lhe permitia muitas liberdades. Aos 9 aos de idade, Jack perdeu seu irmão, Gerard, um trauma que ele guardou calado por décadas, até resolver escrever sobre o fato posteriormente. Ele também trabalhava ajudando o pai numa gráfica e jogava futebol americano com dedicação no colégio para conseguir uma bolsa numa universidade, já que sua família não tinha condições de pagar os estudos dele.

Bom jogador, ele conseguiu uma bolsa na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, para onde se mudou. Logo no primeiro ano, uma contusão o tirou do time e ele começou a passar muito mais tempo na biblioteca da universidade. Foi quando conheceu as obras de Walt Whitman, Hemingway e Jack London. E conheceu também caras como Allen Ginsberg e William Burroughs, de quem logo ficou amigo. Kerouac se encantou com aqueles caras intelectuais, falando horas sobre Nietzsche ou Herman Melville, loucos de benzedrina e bebendo qualquer destilado barato que encontrassem. Foi quando Jack começou a escrever. Escrever e viajar. Era o fim dos anos 1940 e Jack conheceu o emblemático Neal Cassidy, um jovem hiperativo, criado solto no mundo, com quem Jack Kerouac viajou de Nova Iorque até o México mais de uma vez, de carona, de ônibus, de trem e até num carro supostamente roubado. Depois de muitas aventuras, em 1949 Jack escreve seu primeiro romance, chamado The Town and the City. O livro é publicado no comecinho de 1950, mas sem repercussão nenhuma.

Kerouac passa todo o ano de 1950 frustrado e pensando se escreveria um novo livro. No começo de 1951 ele começa a reunir alguns manuscritos de suas viagens com Neil Cassidy e resolve escrever sobre toda aquela experiência. Nascia o livro On The Road. Não é lenda. A versão original de On The Road foi escrita entre os dias 9 e 27 de abril de 1951. Kerouac adaptou uma bobina de papel de telex em sua máquina de escrever, para não precisar ficar parando para tirar e colocar folhas de papel. Ele escrevia por horas a fio, freneticamente, movido a café, benzedrina e discos do Charlie Parker. O manuscrito original, da bobina de papel, mede 40 metros! 40 metros de prosa sem parágrafos, com pouca pontuação… um caos! Mas alguns amigos de Jack, como Lawrence Ferlinghetti, sabiam que aquela narrativa febril era algo muito especial. O problema é que ninguém mais tinha essa noção. O editor de Jack organizou aquele manuscrito e saiu pelas editoras para tentar publicar o livro. Nenhuma topou.

On the Road só seria publicado em 1957, pela editora Viking. Daquele manuscrito original de 1951, muita coisa, mas muita mesmo, foi alterada ao longo dos anos. Kerouac o reescreveu várias vezes. Até mesmo quando a Viking aceitou publicá-lo, exigiu que fossem eliminadas 100 páginas para o livro ficar menor e mais fácil de ser vendido. Nesses 6 anos de tentativas de publicar On the Road, Jack passou maus bocados, estava sem dinheiro, frustrado. Quando o livro finalmente saiu, e foi tão aclamado, ele não conseguiu curtir realmente esse sucesso. Ganhou muito dinheiro, é verdade, mas passou a beber muito e se lamentava por ter que responder todo dia, em entrevistas, o que significava a geração beat e se ele se considerava o porta-voz dela. Pelo menos a aceitação bárbara de On the Road fez com que Jack nunca mais tivesse problemas para publicar um livro. Contando The Town and the City e On the Road, Jack Kerouac escreveu 23 livros. É até questionável se On the Road realmente é o melhor deles. Há quem diga que Visions of Cody, por exemplo, é o melhor livro de Kerouac, com uma narrativa mais livre e alegorias mais brilhantes, mas acaba sendo mais uma questão de gosto. Sem falar que quando a editora Penguin conseguiu lançar o manuscrito original, aquele da bobina de papel, On the Road ganhou novas cores. Eu li o manuscrito em inglês, e é uma leitura transcendental. Apesar da dificuldade com a falta de parágrafos e uma pontuação confusa, a fluidez da leitura é inacreditável, tem ritmo, é como um disco de jazz.

Mas o fato é que, com tudo que passou até 1957, e o quanto foi atormentado depois do lançamento de On the Road, Jack Kerouac virou um homem recluso, renegou muito da sua história passada. Se afastou de seus antigos amigos Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti, considerando-os uns maconheiros comunistas e acabou se tornando um velho amargo de apenas quarenta e poucos anos de idade. Jack morreu no dia 21 de outubro de 1969, ano em que a revolução cultural que On the Road inspirou também dava sinais de cansaço, dados tantos excessos. Em 1969 o movimento hippie começava a perder espaço para bandas mais pesadas e de temática sombria como o Black Sabbath, ou bandas de virtuoses que criaram o rock progressivo, como Emerson, Lake & Palmer.

Mas a obra de Kerouac transcendeu sua própria vida. Jack é muito mais o Sal Paradise do que o velho Kerouac reacionário. On the Road mudou muitas vidas. Bob Dylan, Chrissie Hynde, Hector Babenco e tantos outros artistas já disseram que fugiram da casa dos pais ainda muito jovens depois de ler On the Road. Eu cheguei a arrumar uma mochila para ir embora também, mas não tive coragem. Ainda assim, On the Road me fez querer saber mais sobre a vida, me inspirou a escrever, me fez querer ler mais, saber mais, sentir mais! Neste dia 12 de março, Jack Kerouac completaria 100 anos de idade. E por tudo isso, ele merece ser sempre lembrado e celebrado.

Nesta noite, quando a estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria antes da chegada da noite completa que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados farrapos da velhice, eu penso em Jack Kerouac. Eu penso em Jack Kerouac.

HOJE EU RECOMENDO

Livro: Visões de Cody
Autor: Jack Kerouac
Editora: L&PM
Visões de Cody foi escrito em 1952 e é uma espécie de continuação de On the Road, mas sem o foco em Neil Cassidy e mais voltado às reflexões do próprio Kerouac. Se ele é melhor que On the Road, como afirma Eduardo Bueno, eu não sei, mas é um livro incrível.

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