Tchê tchê re re tchê tchê, agroshowbusiness e você

Paulo Argollo

Uma certeza eu tenho: não existe certo e errado na música. Na arte em geral, melhor dizendo. A expressão artística não deve ter limite ou se prender a determinados padrões e conceitos. A arte é livre.

Nos anos da ditadura militar, a classe artística engajada politicamente criticava o pessoal da Bossa Nova, dizendo que eles eram alienados e que, enquanto eles cantavam que o barquinho vai e a noitinha cai, a polícia estava sentando a porrada em estudante nas ruas. Ora, a Bossa Nova foi uma manifestação artística genuína, impactante e belíssima. E, pelo próprio estilo de vida e visão de mundo daquela turma, não tinha mesmo como eles serem o Rage Against The Machine.

Imagine o João Gilberto, cantando baixinho daquele jeito, querendo cantar música de protesto! Não ia funcionar.

Piadas à parte, o que eu quero dizer é que qualquer expressão artística que seja sincera é digna e tem a capacidade de emocionar algumas pessoas.

Artistas como o Roberto Carlos, por exemplo, sempre tiveram uma postura que não me agrada: estar sempre em cima do muro. É aceitável que a sua música não seja de protesto, não evoque as mazelas da humanidade, não critique um governo autoritário e etc. Mas o artista, sendo uma pessoa pública, não deve se privar de expor seus princípios, valores e até mesmo posicionamento político. E isso é para o bem e para o mal.

Tenho visto muita gente dizer que as pessoas não deveriam misturar música e política, que palco de show não é palanque, tudo por conta de todos os acontecimentos envolvendo pessoas da classe musical, desde as manifestações no Lollapalooza até os escândalos dos valores exorbitantes de shows sertanejos que vieram à tona depois da treta entre Zé Neto e Anitta nas redes sociais. E eu queria aqui justamente falar sobre a música sertaneja.

Falando sério, a música sertaneja é uma das manifestações culturais mais significativas do Brasil. A trajetória e a evolução deste gênero diz muito sobre a sociedade brasileira. Vamos começar pelo básico. Um caboclo que toca baião em Juazeiro do Norte, Paraíba, e outro que toca uma guarânia em Mirassol D’Oeste, Mato Grosso, ambos estão tocando música sertaneja. Mas vamos deixar de lado a música sertaneja nordestina e nos concentrarmos na música sertaneja do interior de São Paulo, norte do Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, todas com as mesmas características e influências de lugares que foram desbravados e colonizados essencialmente por bandeirantes paulistas.

A história da música sertaneja é muito complexa, cheia de nuances, pontos de vista diferentes, que devem ser analisados com calma. Para isso eu recomendo imensamente o livro Cowboys do Asfalto, que incrível, delicioso de se ler, muito bem escrito pelo Gustavo Alonso e lançado pela editora Civilização Brasileira. Neste livro, estendemos que a música sertaneja sempre foi rachada. No início, era música caipira, com representantes como Pena Branca e Xavantinho, Tonico e Tinoco e tantos outros. Quando essa música caipira começou a flertar com ritmos estrangeiros e utilizar instrumentos elétricos, isso em meados dos anos 50, a ruptura começou pra valer. Foi quando se cunhou ao termo sertanejo. A música caipira era a tradicionalista e a sertaneja era a contemporânea. É interessante notar que, quando se fala de mistura de ritmos estrangeiros, não estamos falando de rock ou jazz. Estamos falando da guarânia paraguaia, do tango argentino, do bolero mexicano, da milonga uruguaia. Os instrumentos elétricos não eram guitarras, mas o baixo e o piano elétrico.

Até o fim dos anos 80, tanto caipiras quanto sertanejos eram da segunda divisão da música para a indústria cultural. Apesar de essa rixa sempre existir, eles empatavam ao serem igualmente ignorados pela imprensa e classe artística, mesmo que vendessem muitos discos e fizessem shows lotados. O próprio Gustavo Alonso diz que a música sertaneja é um retrato fiel do Brasil. Assim, mesmo os muito pobres, boa parte dos caipiras e sertanejos apoiaram o golpe militar, por exemplo. O povo do interior sempre foi mais conservador, mais religioso, mais bruto.

Poucos foram os artistas sertanejos que expressaram, em música, ideais contrárias ao establishment e aos valores do governo. Neste ponto, destaca-se a música Grande Esperança (Reforma Agrária), gravada originalmente pela dupla Zilo & Zalo em 1965. A música é contundente na defesa da reforma agrária e na crítica ao capitalismo que, com a americanização da cultura e o início do investimento por parte dos militares no agronegócio, beneficiando latifundiários, começavam a avançar. Nos últimos versos da canção, a dupla canta: “Que eles não deixem o capitalismo levar ao abismo a nossa nação. A desigualdade aqui é tamanha, enquanto o ricaço não sabe o que ganha, o pobre do pobre vive de ilusão!”.

Duplas como Zilo e Zalo realmente eram exceção, ainda mais na ditadura militar. A maioria se prestava a louvar os soldados, a transamazônica, caprichando no ufanismo. Enquanto isso, o agronegócio nunca parou de crescer. Sempre se fazendo valer de subsídios e favores dos altos escalões do governo, o dinheiro rolava solto.

Em 1982, Chitãozinho e Xororó quebram a barreira das rádios AM com Fio de Cabelo. As grandes empresas ligadas ao agronegócio já vinham custeando feiras agropecuárias e festas de rodeio com shows de duplas sertanejas. Com o sucesso de Chitãozinho e Xororó, essas empresas começaram a ver potencial de lucro também nas duplas sertanejas. Foi juntar a fome com a vontade de comer. Em 1989, Entre Tapas e Beijos, interpretada por Leandro e Leonardo, também explode nas rádios e acaba de escancarar a porta do mainstream para o gênero. Coincidentemente, ou não, a música sertaneja foi a trilha sonora da era Collor. Todas as duplas se posicionaram a favor de Collor nas eleições e frequentaram a residência do presidente durante seu curto mandato.

De lá pra cá, a coisa só cresceu. A nova geração da música sertaneja, bisonhamente chamada de “sertanejo universitário”, aparece cheia de contradições. Replica o discurso moralista e conservador do homem da fazenda, religioso, tradicionalista, xucro, mas ao mesmo tempo canta sobre bebedeira e ostentação. Mas a música em si nem vem muito ao caso. Como eu disse no começo, cada um tem a sua verdade, e se essas canções são a expressão da realidade dessa turma, e há quem se emocione e se identifique com elas, tudo bem. O que não podemos é deixar de notar que o dinheiro injetado no show business sertanejo é obsceno, que o agronegócio está cada vez mais interessado em se meter na mídia. Lembra que o agro é pop, o agro é tudo? E isso tudo vai refletir lá em cima, na infame bancada ruralista, a bancada do boi. Que, junto com as bancas da bala e da bíblia, podem levar a nossa política por caminhos tortuosos.

Não vou nem perder tempo falando sobre as diferenças entre Lei Rouanet e recursos de prefeituras que pagam shows de mais de 500 mil reais. Isso a imprensa já está fazendo bem. Só quero deixar claro que qualquer tipo de música é válida e importante. Mas o que rola nos bastidores do showbusiness, seja de sertanejos, pagodeiros ou roqueiros, deve ser investigado, caso esteja sendo ilegal.

Leia o livro Cowboys do Asfalto e entenda a música sertaneja em todo o seu vasto e complexo contexto. O agroshowbusiness é muito maior que qualquer Titanic, e a tatuagem da Anitta parece ser um iceberg no meio do caminho.

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