Vamos fugir deste lugar, baby

(Paulo Argollo)

Uma chuva torrencial desabava sobre a cidade de Lisboa. Para um dia tão inadequado à navegação, a movimentação no porto da cidade chamava a atenção. Eram homens carregando caixas e mais caixas, baús e todo o tipo de bagagem. Tudo era feito às pressas, com muita gritaria e sob os olhos atentos de algumas dezenas de soldados do exército português. De repente, começam a chegar muitas pessoas, se junta uma multidão, todos encharcados e com ares de desespero. Minutos depois, faz-se um silêncio e é aberto um caminho entre a multidão. Aproximavam-se o príncipe regente Dom João, com sua mãe, a rainha D. Maria, sua esposa Carlota Joaquina, seu filho pequeno, Pedro e mais uma comitiva. Era a família real que chegava e logo embarcava na maior das naus ancoradas por ali. Finalizado o embarque da realeza, se faz novamente uma gritaria, a multidão passa a se acotovelar para também embarcar nas demais embarcações. Era o dia 27 de novembro de 1807. A corte portuguesa abandonava seu reino, deixando o povo português à mercê das tropas de Napoleão Bonaparte, que se avizinhavam de Lisboa. O destino da família real era a sua mais próspera e acessível colônia: o Brasil.

A transferência da realeza de Portugal para o Brasil é um dos episódios da história brasileira que eu mais gosto! Além de ter uma importância gigantesca para o desenvolvimento do Brasil e para a manutenção do reino de Portugal, trata-se de um período recheado de intrigas, aventuras e grandes acontecimentos. Há muitos relatos desencontrados sobre como realmente aconteceu o embarque da realeza em Lisboa e sua partida, mas há um certo consenso sobre a cena que eu narrei no parágrafo acima. Alé disso, eles embarcaram no dia 27 de novembro, mas a frota de embarcações só levantou âncoras e zarpou mesmo no dia 29, pois tiveram que esperar passar o mau tempo e os ventos favoráveis soprarem. Mas antes de falar sobre a viagem e a chegada em Salvador, a gente precisa voltar um pouco no tempo e entender essa treta toda.

Desde 1370 Portugal mantinha uma aliança com a Inglaterra que se estreitou muito durante as cruzadas cristãs, cavaleiros templários e aquela coisa toda. Sim, Portugal teve forte participação nisso. Fora isso, havia o famoso acordo de panos e vinhos, como era conhecido o acordo comercial entre os dois países. Enfim, era uma relação forte e muito antiga. Também é importante lembrar que Portugal e Espanha nunca se bicaram, sempre foram rivais. Mas tentaram entrar em acordo algumas vezes, como na época da União Ibérica, entre 1580 e 1640, quando os dois reinos se unificaram sob uma só coroa. O acordo não vingou. Outra tentativa de amenizar essa rivalidade se deu EM 1785, quando foi arranjado o casamento entre o príncipe português Dom João com a princesa da Espanha Carlota Joaquina. Logo de cara, o casal não se deu bem, mas mantiveram o casamento aos trancos e barrancos, tiveram filho e etc. Em 2 de dezembro de 1804, em Paris, Napoleão Bonaparte era coroado imperador da França, e dali iniciaria uma campanha de invasões pela Europa inspirado pelas glórias do extinto Império Romano, em busca de territórios e da soberania da França. E tudo isso é fundamental para entender a vinda da família real para o Brasil.

Em 1806 as tropas francesas já marchavam sobre a Espanha. A resistência dos ingleses fez com que Napoleão instaurasse o Bloqueio Continental, um decreto que obrigava que nenhum país europeu fizesse comércio com a Inglaterra. De olho em Portugal e sua forte relação com os ingleses, Napoleão passou a pressionar os portugueses a cortar relações com a Inglaterra, caso contrário ele invadiria e arrasaria Portugal. Em agosto de 1807 a rainha de Portugal, D. Maria, a Louca, era realmente já considerada insana e inapta a governar. O poder estava nas mãos do jovem príncipe regente, Dom João. E, naquele cenário, chega uma carta de Napoleão dando um ultimato. Exigia a adesão dos portugueses ao Bloqueio Continental e também que Portugal declarasse guerra à Inglaterra. As tropas francesas se aproximavam de Portugal, tendo já a Espanha dominada, ou seja, a coisa era séria. Fez-se então o óbvio. Dom João respondeu dizendo: “Fique tranquilo, não vamos mais fazer comércio nenhum com os malditos ingleses e também já vamos declarar guerra contra eles!”. Só que não.

Malandramente, Dom João estava o tempo todo em contato com os ingleses. Foi tudo forjado. Portugal sabia que não podia enfrentar sozinho o exército francês. Também sabia que se desse as costas para os ingleses, a imbatível marinha britânica iria bombardear toda a costa portuguesa, fazendo um estrago que faria com que o famoso terremoto de 1755 em Lisboa parecesse brincadeira de criança. Ocupados em defender seu próprio território os ingleses também não poderiam dispor de seu próprio exército para auxiliar os portugueses a se defender. Restava uma opção. A Inglaterra ajudaria na logística para que a família real se refugiasse em uma de suas colônias, com todas as suas riquezas. Os franceses invadiriam Portugal, mas não teriam muito o que fazer por lá, e os ingleses ganhariam tempo para se organizar junto às tropas portuguesas para expulsar os homens de Napoleão. Em 20 de outubro de 1807 Portugal declara guerra contra a Inglaterra na maior cara lavada. Dois dias depois, os ingleses já começam a mobilizar a frota que iria escoltar a corte portuguesa até o Brasil.

Napoleão chegou a escrever em suas memórias posteriormente que o único monarca que havia conseguido enganá-lo foi Dom João, o príncipe regente de Portugal. A família real deixou Portugal no dia 29 de novembro de 1807. Poucos dias depois os franceses conquistavam Portugal sem dar um tiro sequer. A viagem dos portugueses foi intensa. Eram 8 naus, 3 fragatas, 3 brigues e duas escunas, que levavam aproximadamente 10 mil pessoas, muitas riquezas, livros e até mobílias! Enfrentaram tempestades, surtos de doenças e calmarias intermináveis por 54 dias. Até que no dia 22 de janeiro de 1808, exatos 214 anos atrás, uma parte da frota que partira de Portugal, incluindo a nau que carregava a família real, ancorava no porto de Salvador, na Bahia. Dom João, que se tornaria rei em 20 de março de 1816, foi o primeiro monarca europeu a pisar em uma de suas colônias. E ele desembarcou justamente no mesmo lugar onde 308 anos antes Pedro Álvares Cabral também chegara para declarar aquelas terras domínio de Portugal.

O primeiro ato de Dom João no Brasil foi um dos mais significativos: ele assinou, no dia 24 de janeiro, o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas. O Brasil deixava de ser uma colônia para ser um reino unido a Portugal e estava livre para fazer comércio com outros povos. Alguns dias depois da chegada, a tripulação pode descansar, reabastecer as naus de comida e água fresca e a família real seguiu viagem para o Rio de Janeiro, a capital do país. Lá chegaram no dia 8 de março de 1808 e se instalaram definitivamente. Começava ali um período de intensa transformação para o Rio de Janeiro e todo o Brasil.

HOJE EU RECOMENDO

Livro: 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil
Autor: Laurentino Gomes
Editora: Globo Livros
Ano de lançamento: 2014
Um livro delicioso de se ler, com muita, mas muita mesmo, informação sobre esse período tão fascinante da nossa história.

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