Aquela dívida

(Paulo Argollo)

Liberdade. Tem-se falado muito em liberdade ultimamente. “Ora, eu sou livre para escolher se quero me vacinar ou não”. Ainda melhor a frase de um certo líder que não consegue liderar: “A nossa liberdade vale mais do que a nossa própria vida”. Uma filosofia deveras impressionante, dá até vontade de perguntar para as pessoas que morreram por escolher não tomar vacina se elas estão se sentindo muito livres ultimamente. É óbvio e ululante que a liberdade é um bem preciosíssimo! Justamente por ser tão importante, deve ser bem cuidada e aplicada com sabedoria. Mas eu não estou aqui pra falar de vacina. Nem exatamente sobre liberdade. Mas estou aqui pra te mostrar como a nossa história corrompe a liberdade. Como nossa sociedade sempre foi retrógrada, cruel e afeita a ilegalidades.

Com as primeiras capitanias hereditárias se desenvolvendo e começando a produzir cana-de-açúcar em larga escala, a mão de obra indígena, escravizada, claro, começa a não dar conta do recado. Em 1535 chegam no nordeste brasileiro os primeiros navios trazendo africanos para serem comercializados como trabalhadores escravos para os senhores de engenho. Começava ali uma prática que alguns brasileiros iriam se especializar e tornar absurdamente lucrativa. Nos próximos 272 anos, o Brasil recebeu milhões de africanos. Malandramente, alguns lusos brasileiros logo perceberam que não era o açúcar que realmente dava dinheiro, mas sim o comércio de escravos. De fato. Porque os senhores de engenho estavam literalmente rendidos nas mãos dos traficantes de escravos. Primeiro porque realmente os senhores de engenho precisavam a mão de obra. Segundo, se o senhor de engenho se recusasse a comprar escravos, os traficantes não transportariam o açúcar produzido para ser vendido na Europa. Porque era assim que funcionava: o navio chegava na África, era abarrotado de escravizados, chegava no Brasil, vendia os africanos, carregavam o navio de açúcar, que era transportado e vendido na Europa, e o navio voltava vazio para a costa da África para recomeçar o ciclo.

Você notou que eu mencionei que esse ciclo de escravidão durou no Brasil por 270 anos, né? É verdade. Porque, depois disso, piorou. Em 1807, ou seja, 272 anos, pra ser mais exato, depois de o primeiro navio negreiro chegar no Brasil, a Inglaterra decide abolir a escravidão. A lei proibindo a comercialização de humanos e mão de obra não remunerada foi assinada no parlamento inglês no dia 7 de julho de 1807. E você bem sabe que até o começo do século XX quem mandava e desmandava no mundo era a Inglaterra, não é? Pois bem.

Neste mesmo fatídico ano de 1807, a Inglaterra faz aquele acordo matreiro, por baixo dos panos, com Portugal escoltando a corte portuguesa em sua vinda para o Brasil, fugindo de Napoleão Bonaparte. Neste acordo, uma das exigências inglesas era justamente que Portugal proibisse o tráfico de negros para o Brasil, como prova de um primeiro passo para a abolição total da escravidão. No dia 19 de fevereiro de 1810, já bem estabelecido no Rio de Janeiro, Dom João VI se vê na obrigação de assinar um tratado de colaboração com a coroa inglesa para o fim do tráfico de escravos. À partir daquela data estava proibido o tráfico de escravos no Brasil!

Acontece que esse tratado, não só ninguém comemorou, como trataram de ignorar solenemente. Em 1817, numa convenção das principais nações europeias em Viena, Áustria, as autoridades portuguesas são forçadas a assinar um novo tratado proibindo definitivamente o tráfico de escravos ao norte da linha do Equador. Um problemão para os brasileiros, que capturavam negros nos portos de Benin, Togo, Gana e Costa do Marfim, todos acima da linha do Equador. Aí sim, resolveu o problema, né? Claro que não! Piorou mais! Com a proibição oficializada e a marinha britânica policiando o oceano Atlântico, o preço do escravo na África caiu muito, e o preço do escravo no Brasil subiu muito! Os traficantes compravam o escravo na África baratinho e vendia super caro no Brasil! Os negócios cresceram absurdamente. Mesmo perdendo um ou outro navio para os ingleses, ainda era extremamente lucrativo! Mas, uma hora isso tinha que parar!

No dia 23 de novembro de 1826, em troca do reconhecimento por parte da Inglaterra (sempre ela!) do Brasil como um país independente, Dom Pedro I assina um novo tratado proibindo o tráfico de escravos, inclusive da costa africana ao sul da linha do Equador. Sim, porque depois de alguns anos a região de Gana, Benin já não conseguia manter o negócio funcionando. Os traficantes então passaram a explorar a costa da Namíbia e Angola, e até a costa africana do oceano Índico, comerciando escravos na costa de Moçambique.

A palavra “tratado” para designar um decreto, uma lei, é deveras curioso, pra não dizer irônico. Eu não preciso dizer que o tal tratado de 1826 também trataram de ignorar, né? Tanto que, em 13 de março de 1830, um novo tratado proibia definitivamente o tráfico de escravos, tanto externamente, por mar, como internamente, entre as províncias. Não perde a conta. Era o quarto tratado. Que foi tratado com igual desprezo.

Pra se ter ideia, entre 1830 e 1850, aproximadamente 400 mil escravos entraram ilegalmente no Brasil! E isso é o dizem os números oficiais. Quer dizer que provavelmente esse número foi bem maior.

Foi realmente em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, assinada no dia 4 de setembro, que realmente o tráfico de escravos passou a ser combatido no Brasil, com as autoridades brasileiras fiscalizando, punindo e prendendo traficantes.

Por volta de 1855 já não se tinha notícia da entrada de nenhum escravo vindo da África. Claro, ainda havia o comércio interno, entre fazendeiros e tal. Mas o tráfico ultramarino fora realmente extinto. Contudo, o trabalho escravo ainda se manteve firme. A escravidão no Brasil foi abolida, como se sabe, somente no dia 13 de maio de 1888. E mesmo assim, a famosa Lei Áurea gerou muita discussão. Grande parte da elite brasileira era contra o fim da escravidão. Sabe esse pessoal que brada pela liberdade? Então, é o mesmo perfil: “Ora bolas, mas eu tenho o direito de escolher se eu quero comprar um escravo ou não! Estão tolhendo essa minha liberdade!”.

Aí você para e pensa o seguinte: Por que um carro com uma família de negros que estavam indo para uma festa é cravejado de balas em plena luz do dia por militares? Por que a sua primeira e instintiva (ênfase na palavra instintiva) reação ao ver um jovem negro numa rua sem muito movimento é proteger a sua carteira ou celular? Por que um jovem africano refugiado no Brasil, que só estava cobrando o seu salário, que estava atrasado, foi espancado e morto por pelo menos três pessoas? E, mais: Por que ainda há quem não concorde com a lei de cotas para negros em universidades e concursos? A resposta é simples. É porque o Brasil foi o último país relevante do mundo a abolir a escravidão! Porque o Brasil foi o país do mundo que mais recebeu negros em todo o mundo! Porque sempre, sempre, tivemos uma sociedade retrógrada, egoísta e cruel que foi favorável à escravidão. Uma sociedade que sequer consegue respeitar o estacionamento exclusivo para cadeirantes, que frauda atestado médico e que precisou de cinco tratados, ou decretos de lei, para começar a diminuir o tráfico de escravos! E sabe o que a escravidão faz? Ela cria uma barreira étnica e racial! Ela faz com que uma pessoa seja identificada como escravo pela cor da sua pele. E isso se torna uma herança perpétua, que prevalece até hoje.

Um homem branco, seja qual foi seu poder aquisitivo, pobre, classe média, rico… não importa, ele sempre está sempre em vantagem com relação a um negro, ainda que isso seja inconsciente. Então, quem acha que a sociedade brasileira não está em dívida com o povo negro, quem acha que não há reparações a serem feitas urgentemente, quem pensa que não existe racismo no Brasil, está completamente errado.

HOJE EU RECOMENDO
Série: Eles (título original: Them)
Criador: Little Marvin
Ano de lançamento: 2022
Muito tem se falado sobre esta série. Ela é realmente muito chocante, com cenas pesadíssimas e tal. Mas alguns momentos em que não se distingue o que é real e o que é sobrenatural, a narrativa toda, a história de uma família negra tentando se adaptar num ambiente totalmente hostil acaba fazendo valer a pena. Sem falar que levanta mais uma vez toda a discussão sobre racismo, que deve ser cada vez mais discutida, pensada e combatida.

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